Vida Consagrada
Se fizermos uma viagem ao
passado, lá onde viveram os hominídeos
(família da ordem dos primatas) perceberemos que os mesmos deram início ao que
chamamos hoje de “vínculos humanos” ou socialização de pessoas. Criaram suas
aldeias, formaram seus grupos, conheceram-se nessa troca de relações. Tal
evolução humana propiciou vínculos mais estreitos, relações de vizinhanças ao
ponto de podermos dizer que o homem descobriu ainda ali, a necessidade de
conviver com outros de sua mesma espécie, de fazer amizades, de trocar
afinidades. Contudo, o avanço não parou e, cada vez mais, tornou-se uma
realidade humana com o grande aparecimento de novas tecnologias, com
ferramentas multiformes que vieram possibilitar ainda mais o encontro de
pessoas. O homem pós-moderno, neste tempo de cibercultura, é o homem da
comunicação.
A
Vida Consagrada, chamada a ser nômade
de Deus no árduo processo de idas e vindas, é desafiada a caminhar
também sobre este grande terreno chamado “espaço virtual”. Um processo que
requer maturidade, olhar atento e coração samaritano, semelhante àquele que,
caminhando de Jerusalém a Jericó, deparou-se com o homem ferido pelos
salteadores, sentiu compaixão e
aproximou-se para tratar-lhe os ferimentos, não obstante às diferenças
entre ambos. Esta parábola poderá nortear nossa reflexão.
Como já falamos da evolução, tal
evento trouxe para a vida do homem uma exaustiva carga de informações e
propostas tentadoras que, por vezes, ultrapassam os muros dos conventos e casas
paroquiais. Assim, é pertinente que prestemos a devida atenção, pois aqui, “existem
aspectos problemáticos: a velocidade da informação supera a nossa capacidade de
reflexão e discernimento, e não permite-nos fazer uma expressão equilibrada e
correta de si mesma”.[1]
Tantos meios interligados entre
si, ao mesmo tempo, entram em contradição quando perdem os vínculos
tradicionais, e aqueles que seguem conectados por um toque do dedo, ficam cada
vez mais distantes do encontro pessoal. “O resultado dessa traição, isto é, a
possível separação entre conexão e encontro, entre compartilhamento e relação,
é aquela sugerida pelo título de um ensaio do psicanalista Luigi Zoja: La morte
del prossimo (A morte do próximo)”.[2]
O Papa Francisco, na sua mensagem
para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2014, já dizia que os meios de
comunicação que hoje aproximam as pessoas, que vêm tornando cada vez menor o
mundo, “deveria fazer-nos mais próximos uns dos outros”. Tal premissa vem
perdendo a sua validade num mundo de grandes casos de isolamento e depressão,
de pessoas trancafiadas em si mesmas, de pessoas seletivas, que conversam com
quem mais lhes é convenientes.
Vivemos uma crise de convivências
físicas, pois o virtual tornou-se um mundo “quase
verdadeiro” que tudo parece ser tão mágico, tão fácil de excluir ou
incluir, de deletar ou de salvar, de bloquear ou de interagir. As escolhas são
de fácil execução prática. Neste cenário virtual, a Vida Consagrada é convidada a viver a “mística do encontro” que o
Papa Francisco já acenara no seu Magistério: “no nosso tempo, dominado pela comunicação pervasiva e global e, ao
mesmo tempo, pela incapacidade de comunicar com autenticidade, a vida
consagrada é chamada a ser sinal da possibilidade de relações humanas
acolhedoras, transparentes, sinceras”.[3]
Assim, a rede virtual para a Vida Consagrada não deverá ser apenas um
instrumento de comunicação que se pode ou não usar, mas deve ser entendida como
um “ambiente” onde acontece novas formas de educação e cultura, no qual seja possível
estreitar os relacionamentos. Para Spadaro (2014, p.17) “é um modo de habitar o
mundo e de organizá-lo”. Ver-se desse modo que o espaço na rede, vislumbrasse
no modo como vivemos no espaço geográfico de carne e osso. É uma projeção bem
verdadeira daquilo que, de fato, somos ou queremos fazer, “logo um ‘lugar’
específico dentro do qual se pode entrar em alguns momentos para viver online e
do qual sair para entrar na vida off-line”.[4]
Esse ambiente existe para nós. É
fato! Agora, o modo como habitamos nele é que fará toda a diferença e nos
transformará em pessoas melhores, mais próximas, acolhedoras, ao modo que o
contrário também é possível, pois poderá nos distanciar dos outros pelo simples
fato de preferir o grupo que quero interagir ou escolher, com quem devo fazer-me
amigo, de tomada de escolhas (feitas muitas vezes sem maturidade).
Tomemos mais uma vez a parábola
do Bom Samaritano. Atentemos o nosso olhar para esta cena: vendo o pobre homem
apanhado em dor, jogado ao chão, o Samaritano não apenas tornou-se próximo, mas
cuidou das feridas. Neste caso, “não se trata de conhecer o outro como meu
semelhante, mas da minha capacidade para me
fazer semelhante ao outro”.[5]
O Papa Francisco fazendo esta comparação com o que ele chama de “proximidade”, admoesta-nos
para algo mais profundo: “Naquele tempo, eram condicionados pelas regras da
pureza ritual. Hoje, corremos o risco de que alguns meios nos condicionem até o
ponto de fazer-nos ignorar o nosso próximo real”.[6]
Vemos que, o plano virtual, apresenta-nos
aquilo que já há muito aprendemos ou estamos aprendendo no plano real, físico.
A parábola aponta para uma alteridade mais sensível e realista, isto é, a certeza
de que não estamos sozinhos no mundo e, o nosso “dedo”, quando acionado aos
comandos virtuais, não pode manipular a tudo e a todos ao meu próprio gosto.
Existe um “outro”, existe um grupo além de mim mesmo e que somente posso
considerar-me “eu-individual” quando sou/estou para o outro, quando permito-me
realizar um contato com o outro. Há uma relação de um-para-o-outro que torna-nos
diferentes e arranca-nos do indiferentismo. Eis a proposta de Papa Francisco
aos/às religiosos/as consagrados/as: proximidade
e encontro. Segundo o religioso Papa,
estas palavras fomentam a tarefa de despertar
o mundo, de irmos ao encontro dos homens e mulheres hodiernos.
Há uma linguagem cibernética que,
se olhada de forma criteriosa, perceberemos que elas começam a “influir também
no modo de pensar a fé cristã”. Spadaro diz em sua obra que, o homem agindo
nesses espaços tecnológicos, na verdade estão vislumbrando-se “nos desejos que
o ser humano sempre teve e aos quais procura satisfazer.”[7]
A forma como me apresento no espaço virtual, é apenas uma sobra real daquilo
que sou ou daquilo que almejo de mais preciso na vida quotidiana. Por isso, o/a
consagrado/a deve perceber-se e sentir-se num estado de alteridade e nunca de individualismo,
pois se assim não for, quebraria o sentimento de pertença à vida do outro – não
para especular a vida alheia - , mas ser para o outro e viver com o outro todas
as suas fases, quer de alegrias quer de dores, como no caminho de Emaús. Como
Jesus com os discípulos, acolhamos na companhia diária as alegrias e as dores
das pessoas, dando calor ao coração, enquanto esperamos com ternura os cansados
e os fracos, a fim de que a caminhada comum tenha em Cristo luz e significado.[8]
Estamos submergidos numa
avalanche de novidades tecnológicas e de informação, “e nunca termina a lista da comunicação em tempo real e das informações
exageradas que nos distraem do essencial e não nos fazem criar comunhão com
ninguém, na verdade, fazem-nos viver no mundo virtual afastando-nos das
relações fraternas”.[9]
É o desafio que atravessamos e que, de forma especial, a juventude enfrenta. Os
seminários e as casas de formação recebem agora rapazes e moças com uma mala a
mais na bagagem, a que carrega um mundo inteiro na palma da mão, e que por
isso, sentem-se na liberdade dar um “enter” quando querem, ou um “delete”
quando o outro não condiz com meu “perfil” e, nesse sentido, o Magistério
de Papa Francisco indica que, a Vida Consagrada assim como todo cristão, é chamada
a ultrapassar as barreiras virtuais, criando relações humanas acolhedoras,
transparentes e sinceras, sendo nômades das periferias, também virtuais.
Por fim, para não alongar-me,
pois a leitura longa é menos proveitosa e construtiva num tempo em que a
tecnologia alcançou tal velocidade e singularidade. Não há tanta procura por
textos longos, mas por imagens e frases soltas que estão em evidência nos dias
atuais. Pretendo voltar com outras analogias, querendo sempre trazer a
semelhança que há entre a tecnologia, os meios de comunicações de modo
especial, os virtuais – nas suas linguagens -, com os sujeitos que vivem a nossa
fé cristã, particularmente a Vida Consagrada.
Que a Bem-Aventurada Madre Maria Pia
Mastena, ajude-nos a preservarmos o nosso coração e a não desperdiçarmos nossa
vocação inutilmente, mas gastá-la com algo que seja aperitivo à glória futura.
Ela sempre quis que nossas casas, isto é, nossas comunidades da Sagrada Face,
sejam verdadeiros “Centros de Reparação”. Façamos o mesmo com nossas “casas virtuais”, procurando também ali,
sermos solidários e vermos o Rosto oculto de Jesus do outro lado do fio, do iPhone, qualquer que seja o aparato
tecnológico, não apenas vermos, mas de sentirmos também suas dores e alegrias.
Que assim seja!
[1]
Francisco, Comunicação a serviço de uma
autêntica cultura do encontro. Mensagem para o 48º Dia Mundial das
Comunicações Sociais (2014).
[2] A.
Spadaro, Ciberteologia Pensar o Cristianismos
nos tempos da rede. Paulinas, São Paulo 2012, p. 62.
[3]
PERSCRUTAI, n. 13
[4] A.
Spadaro, Ciberteologia Pensar o Cristianismos
nos tempos da rede. Paulinas, São Paulo 2012, p. 18.
[5]
Francisco, Comunicação a serviço de uma
autêntica cultura do encontro. Mensagem para o 48º Dia Mundial das
Comunicações Sociais (2014).
[6]
Idem
[7] A.
Spadaro, Ciberteologia Pensar o Cristianismos
nos tempos da rede. Paulinas, São Paulo 2012, p. 16.
[8]
ALEGRAI-VOS, n. 10
[9]
Madre Annalisa Galli, Carta dirigida à
Congregação. Passalanotizia, n. 1, 2015.
Alfredo Leonardo Fernandes
Postulante
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